19/02/2018

Review - Enamorados

Coletânea nacional que me deixou super chateada, vem saber o motivo...
Título: Antologia Enamorados
AutorasJuliane Ivanow, F M Vagabond, Li Youko, Josy Alves e Yume Vy.
Ano de Publicação e Editora: BL Projeto Editorial, 2015.
O amor, esse assaltante... Chega, ataca, rende, domina... Vence. O amor entra em nossos corações das mais diversas formas e sem hora marcada. Um encontro, um olhar, um sorriso no meio do dia... E de mansinho, somos capturados e feitos escravos. Vencer medos e preconceitos é a única forma de vivermos o amor por inteiro. Aceitar que é amor e apenas amor, nossa única garantia de felicidade.


Essa é uma antologia organizada em 2015 pela Yume Vy. São seis contos, cada um escrito por uma autora - sim, todas mulheres já com experiência, pelo que sei e li, e todos parecem conhecidas no "mundo das fanfics yaoi",  e isso é uma informações importante aqui.

Vamos lá: eu não tinha expectativas quanto à leitura, mesmo porque eu nunca vi ninguém comentando sobre, então peguei mais na curiosidade. Na Amazon, a descrição diz: "Acompanhem em nossas páginas as descobertas do amor, a aceitação dos próprios sentimentos e da sexualidade nos contos das autoras". Achei que era uma antologia mais diversificada, digamos, mas todos os contos têm uma pegada boys' love, e isso quer dizer que são todos sobre homens/garotos que se envolvem com outros homens/garotos e se embasam muito no "estilo japonês" de se fazer tais enredos. Isso não seria um problema se tivesse sido bem executado em todos... Vou comentar brevemente de cada um dos contos.

“Primavera” de Juliane Ivanow talvez seja o menos pior dos textos. Tem uma história cabível, a escrita é mansa e atrativa, sim. Mas é um texto que não foi escrito para todo mundo ler e entender, sabe? Na medida em que apresenta diversas expressões e vocabulário que quem não está familiarizado com a cultura japonesa não vai fazer a menor ideia do que significa. Eu gostei porque entendi tudo, e todo esse vocabulário foi usado com propriedade e naturalidade, mas não é um conto pra qualquer um apreciar.

“Vórtex” de F M Vagabond, aqui a coisa começa a desandar. Esse conto me deixou extremamente nervosa e chateada. O texto inteiro traz ideias preconceituosas e machistas embutidas e passadas de forma tão natural ao leitor que me deixou incomodada. Os próprio personagens sabem e comentam sobre isso, mas uma coisa é só falar, outra é demonstrar que tais comportamentos e falas deveriam ser condenadas, e não tratadas de forma natural como são aqui, muito menos piadistas. É o maior dos contos e é o mais problemático também.

“Encontros Sob as Estrelas” de Li Youko. Bonitinho e sensível, tem problemas de revisão como a maioria dos contos, mas é também um dos menos problemáticos. Os personagens não nos são bem apresentados, mas a história introspectiva é bem contada para que não precisemos nos preocupar com os detalhes.

“Quando te Vi” de Josy Alves. Achei meio sem pé nem cabeça? A história começa e termina no meio, não há início ou fim. Também é um texto que propagada uns ideais bem machistas e que eu vou comentar de forma geral mais pra frente.

“Nosso Momento” de Yume Vy. Também achei abrupto e sem explicações que poderiam deixar o leitor mais confortável e ambientado. Os personagens não agem de acordo com suas idades, porém, e fiquei confusa com as mudanças de perspectiva.

“À Primeira Vista” de Sion Dias. É fantasioso e esquisito no começo, mas tem uma mensagem muito bonita no final e me agradou de forma geral. Os detalhes ainda pecam, porém, assim como todos os outros.

Agora vamos lá: vou dar o benefício da dúvida à todas as autoras, mas a coletânea precisa urgentemente de uma revisão e uma leitura sensível, principalmente. Revisão porque há muitos erros de digitação mesmo - travessões fora do lugar, vírgulas sobrando e faltando, até apóstrofes no meio das frases dá pra encontrar, perdidos! A impressão que tive foi que a revisão ficou por conta de cada uma das autoras e depois os textos foram compilados sem que se houvesse uma outra, mais abrangente. E ficou faltando.

A leitura sensível é indispensável mesmo porque todos os textos apresentam estereótipos, falas e atitudes repassadas pelos personagens extremamente problemáticas e que reforçam preconceitos.

Não duvido que todas tenham escrito sem sequer se dar conta da quantidade de problemas de seus textos, principalmente em relação a propagar essas ideias, mesmo que indiretamente, preconceituosas e machistas. Eu disse que os contos se embasam muito no "estilo japonês" de se fazer tais enredos boyslove (se você não conhece, clica pra ler uma explicação) porque a maior parte dos BL têm como característica principal um casal cuja dicotomia "masculinidade/feminilidade" é muito reforçada, mas por questões culturais e/ou estéticas (no caso dos mangás). Numa coletânea ocidental que em nada fala sobre sua influência BL, isso pra mim é inadmissível. E mesmo se falasse: não acho que tenhamos propriedade para tratar as questões que são tratadas nos mangás yaoi/BL por sermos culturas diferentes e por, em nossa maioria, não sabermos que o nascimento do BL se deu devido à necessidade de intervenção nos pensamentos machistas propagados pelos mangás mainstream. Sim, pesquisem, estudem. Não é simplesmente fanservice, ok?

Em todas as histórias um dos garotos é sempre retratado como frágil, de "aparência feminina" e, portanto, que necessita de cuidados e atenção exagerada da outra parte. Se não fica claro para os leitores menos desatentos, esse pensamento é extremamente machista: por que todas as mulheres, ou seres que se assemelham a elas, têm de ser tratados com delicadeza, têm de ser cuidados porque não conseguem cuidar de si, têm de ser frágeis?! Além disso, reforça todo o estereótipo de que uma parte do casal sempre será "inferior" à outra, que sempre terá alguém "por cima" (naquela dicotomia uke/seme que também é muito problemática, mas que funciona LÁ, no Japão, não aqui) e num relacionamento homossexual isso é extremamente homofóbico e, de novo, machista.

Além disso, muitos textos trazem os protagonistas tratando seus "questionamentos" em relação à sexualidade como algo errado. "Você sempre soube que eu era errado, né?", um dos protagonistas de um conto questiona só porque ele é gay.... Espera, quer dizer que ser gay É ERRADO? É o contrário, é o "fora da lei", é o que deve ser justificado, o que tem que se esconder...

Eu não consigo nem expressar o quanto isso é EXTREMAMENTE PROBLEMÁTICO e INSENSÍVEL de se colocar por escrito numa coletânea de acesso ao público geral e que claramente não passou por uma avaliação desse tipo. E isso está presente, mesmo que de forma indireta, em 90% dos contos (na verdade eu acho que só no primeiro é que esse tipo de questionamento não aparece).

O que mais me deixou chateada, porém, foi saber que todas as autoras são MULHERES e que  talvez estejam, infelizmente, tão intrínsecas nessa rede cultural que propagada tais ideais que nem tenham pensado nesses problemas que seus textos trazem/causam. Por isso disse que vou dar o benefício da dúvida para todas, porque sei que é difícil enxergar tais detalhes se o texto não passar pelos olhos de quem consegue enxergar e apontar essas entrelinhas. Mas faltou tato, faltou experiência (sim!), faltou crítica. Para um leitor talvez desavisado e sem preparo, elas passam despercebidas, mas ainda incutem nele tais pensamentos, porque ele os absorve sem pensar - e aí está o maior dos problemas.

Eu só espero que as autoras tenham evoluído desde então porque não podemos deixar que textos com ideais machistas e LGBTQfóbicos tratem desses pensamentos com naturalidade, sem questioná-los, sem trazer soluções ou sequer vê-los como problemáticos. Essa antologia, infelizmente, não faz isso, só os reforça e de forma pouco sensível.

4 comentários :

  1. Oi, Lorena.

    Eita.
    Sabe, eu acho que é ok o autor, de maneira geral, pecar no texto (se não tem uma revisão crítica/textual antes), mas eu acho que é inadmissível a editora responsável pela publicação não se responsabilizar pelo texto e pelas ideias que está publicando. É óbvio que as editoras tradicionais são absurdamente mal preparadas para tratar de todos os processos editorais pelos quais um livro passa.
    Acredito que, sim, o autor, em primeiro lugar, precisa ter responsabilidade e refletir sobre o que escreve, mas se, depois, no processo editorial, ninguém aponta as problemáticas, isso é ainda mais preocupante, sabe. Infelizmente, ainda ficamos muito à mercê de editoras grandes para "validar" trabalhos literários, justamente por causa da responsabilidade que elas sabem que têm.

    Eu não sei quase nada de boys love, porque raramente li esse tipo de história na vida e porque realmente não conheço muita coisa da cultura japonesa - os mangás que li não eram desse gênero. Eu fiquei bem wtf? quando percebi que a coletânea tem esse tipo de história sem nem mesmo explicar o porquê dela, considerando que não somos japoneses.

    Eu sei que a gente não quer fazer leituras decepcionantes, mas eu as acho importantes para que a literatura seja melhor trabalhada a partir de nossas críticas (apesar de que, óbvio, quase ninguém está disposto a ler críticas negativas).

    Obrigada pela resenha, espero que ela chegue aos autores para que reavaliem seus trabalhos.

    Love, Nina.
    www.ninaeuma.blogspot.com

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    1. Oi, Nina. Tudo bem?

      Concordo com você quando diz que aquelas leituras decepcionantes são importantes para a literatura nacional quando expostas de modo educado, como a Lorena fez aqui. Críticas como esta do Marcado Com Letras são extremamente construtivas, em especial por não massacrar os autores ou tentá-los jogar no fundo do poço. E por isso fiz questão de responder aqui no blog. :) A Lorena falou sobre os problemas de maneira educada, mostrando "a saída" para cada um deles e isso é muito importante! Me fez sentir grata e não chateada/agredida com o uso das palavras.

      Definitivamente, ao menos da minha parte, irei corrigir os problemas no meu texto. Inclusive tenho a intenção de ampliar meu conto, exatamente para aprofundar melhor os personagens e falar a respeito da sexualidade, então ler essa crítica da Lorena só me deixou com mais vontade de trabalhar melhor a história.

      Atenciosamente,

      Yume Vy

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  2. Olá, Boa tarde.

    Realmente é muito problemático a quantidade dos menores até os maiores detalhes que o preconceito está presente. Até nas fanfics yaois tem tanta coisa problemática além dessas aí que você citou, que ainda me pergunto por que insistem tanto em problematizar M-preg, que é até bem mais saudável que muita coisa que inventam nessa área.

    Eu realmente gosto de Yaoi, mas coisas como ter sempre um "afeminado" com um estereótipo que enfiam goela abaixo do que é ser "mulher" é bem irritante. Eu sei que existe gay que é realmente assim, mas afirmar isso para todos os gays como querem fazer com as mulheres não é cabível. As pessoas não são assim, elas são bem mais complexas do que isso. E bem mais interessantes que isso também.

    Não pensei muito pelo lado de todo estereótipo afetaria de uma forma muito negativa. Porém é verdade.Isso apenas piora a situação em diversos níveis.

    https://www.newsfallenbooks.com/

    Abraços.

    <3 R.W.

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  3. Olá, Lorena. Tudo bem?

    Agradeço muitíssimo a sua resenha. É sempre bom saber sobre pontos positivos, mas principalmente, aqueles que podem ser melhorados e, lendo a sua resenha, você está coberta de razão. É interessante notar como somos tão influenciados pelo que vemos e lemos a ponto de não perceber detalhes como os que citou (um dos rapazes ser sempre mais delicado, a propagação de que ser gay é errado), porque isso é tão 'comum' no material consumido que reproduzimos sem pensar.

    Sua review foi um alerta e verei a possibilidade de retirar o livro do ar para que esses detalhes tão importantes sejam corrigidos o mais rápido possível, porque, sinceramente, o problema com a revisão é o menor entre os citados por você.

    Nesses três anos muita coisa mudou e minha visão geral sobre o universo LGBTQ+, representatividade, machismo, feminismo, gênero... Eu passei a ter um entendimento muito maior a esse respeito e comecei a reparar nesses pormenores nas histórias que eu escrevia desde 2004. Exatamente por isso estou reescrevendo minhas originais lançadas entre 2004 a 2009, que estavam abandonadas e que agora quero retomar e finalizar, mostrando e questionando exatamente isso.

    Obrigada por sua avaliação e importante alerta.

    Atenciosamente,

    Yume Vy

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