Recentemente, escrevi um capítulo da minha atual novelinha (a "Aprendendo a Gostar de Mim", postada no wattpad) no qual o personagem principal, Renan, chegava à uma conclusão importantíssima para todos os envolvidos na trama: ele é bissexual. No tal capítulo, um outro personagem, o Daniel, que também faz parte da "Aprendendo a Gostar de Garotos", explica de modo bastante didático o que é ser considerado bissexual... Confesso que não gosto muito desse ar "professor" dele, mas me vi muito representada porque, bem, naquele momento específico, o Daniel era eu. Era a própria autora falando através dele: eu explico, converso, tiro dúvidas sobre sexualidade praticamente o tempo todo, principalmente por ser professora de adolescentes.
Eu simplesmente precisava incluir essa aulinha na história por conta de alguns detalhes tanto pessoais, quanto da própria trama. E vou confessar outra coisa: eu não concordo com essa ideia de bissexualidade, e vou tentar explicar o porquê.
A sexualidade é uma parte importantíssima do ser humano. Principalmente porque, diferente dos animais, a gente tem a capacidade de entendê-la e discuti-la. Mais que isso, temos o poder de questionar o que achamos ser "certo" ou "errado" - não quero entrar muito em detalhes sobre isso, porque é praticamente uma dissertação de mestrado (que inclusive estou escrevendo), mas o fato é que acredito que todas as coisas que temos como "padrão" foram construídas social e culturalmente, principalmente sobre a sexualidade. Não é à toa que a hetenormatividade existe - ser heterossexual é a regra, o resto é "desviante".
Com o passar do tempo, e com as discussões avançando, deu pra perceber que existem múltiplos arranjos possíveis de sexualidade, e que nem sempre seu sexo biológico vai definir a sua orientação tanto de gênero (se você se considera "feminino", "masculino", ou uma mistura dos dois, ou nenhum dos dois) ou a sua orientação sexual (hétero, gay, bi, pan, assexual, etc...).
E aí, pronto.
Boom.
As pessoas tendem a surtar porque a base da identidade delas é quebrada - afinal, a sexualidade é a primeira noção que temos de nós mesmos, até antes de nascermos. A maioria das grávidas quer saber se vai ter "menino" ou "menina", não é? E já incute na criança nem nascida a identidade que ela vai carregar, tendo por base o sexo biológico que aparece no ultrassom, sem qualquer questionamento.
É normal estranhar quando se descobre que existem possibilidades diferentes e que elas não dependem do que as pessoas têm no meio das pernas.
E é aí que entra a questão da bissexualidade: a gente, até começar a se questionar isso tudo, sempre pensou tendo por padrão as dicotomias, binarismos, dualidades excludentes. Ou seja, só fazia sentido existir "homem" e "mulher", "feminino" e "masculino", não é? Somente essas duas coisas.
Eu não consigo enxergar o mundo de forma binária - não mais. Por isso não concordo com a ideia da bissexualidade que, convenhamos, está praticamente excluindo e até negando as outras possibilidades de arranjos sexuais - dos transgêneros, transexuais e travestis, por exemplo, e das pessoas agênero, andróginos e de gênero neutro.
No capítulo que menciono no começo desse texto, o Daniel explica que existe a tal da pansexualidade, que é praticamente uma "bissexualidade ampliada" para abarcar arranjos que não se encaixam no binarismo (estou sendo simplista pra ser, sim, didática). Por não ter tido contato com ninguém fora desse binarismo, ou por medo (o que é comum) do desconhecido, o Renan simplesmente rejeita a ideia e se sente confortável na esfera da bissexualidade.
Não estou dizendo que bissexualidade não existe, ou que é errado, pelo contrário. Existem muitas e muitas pessoas como o Renan - e é por causa delas, em partes, que ele próprio existe no meu universo. Para representá-las. Mas eu também fiz questão de mostrar que o leque pode ser amplo. Bem mais amplo.
É para isso, e por isso, que eu sempre bati na tecla do Marcado com Letras ser um espaço para divulgação da cultura queer: queer é um questionamento da padronização de gênero e sexual da sociedade, e tende a se colocar contra as normas socialmente impostas. Ou seja, eu dou voz para a diversidade (principalmente sexual) que geralmente fica escondida, camuflada pelo padrão heterossexual.
Eu quero mostrar para vocês que, assim como as pessoas, os personagens são plurais e eles merecem destaque no cinema, na literatura e na arte. Eles promovem representatividade e inclusão, fazem a gente repensar tudo isso que discuti aqui agora.
Por outro lado, eu também acredito que, apesar de ser uma parte importante, a sexualidade não define ninguém - nem os próprios personagens.
O Renan é jogador de futebol, estudante do ensino médio cheio de dificuldades, filho de pais ausentes, tem problemas com o irmão, e, por acaso, também é bi. Não é só essa última característica que o define, ela só o completa.
O Renan é jogador de futebol, estudante do ensino médio cheio de dificuldades, filho de pais ausentes, tem problemas com o irmão, e, por acaso, também é bi. Não é só essa última característica que o define, ela só o completa.
Essa é mais uma das coisas que venho tentando mudar, a partir de mim mesma, na literatura: os personagens não precisam ficar amarrados às próprias sexualidades para compor suas histórias. Eles são mais amplos que isso, mais plurais que isso. Infelizmente, a maioria dos autores que conheço ainda acha que se seu protagonista é gay, a história tem que girar em torno disso e só, ponto final. Por isso que a maioria dos livros considerados "literatura LGBT*" (muitas vezes sem o asterisco no final mesmo, que significa, basicamente, "queer") que vemos por aí tem o mesmo enredo: protagonista descobre que é gay -> se apaixona -> dilema de sair ou não do armário -> conflitos familiares por conta disso -> alguma tragédia -> revelação -> medo/aceitação/etc.
Não estou julgando, mesmo porque admito que já usei muito essa fórmula... Só estou dizendo que podemos fazer MAIS que isso, não podemos? Podemos, por exemplo, incluir o asterisco para abarcar os transgêneros, transexuais e travestis. Podemos abrir as possibilidades, construir personagens plurais.
Então que tal começarmos hoje?
Que tal abrir o leque?
ps.: tenho muito mais para falar sobre esse assunto, mas resolvi me limitar por agora. A ideia principal é essa mesmo; fiquem à vontade para incluir, discutir e discordar :)
ps.: tenho muito mais para falar sobre esse assunto, mas resolvi me limitar por agora. A ideia principal é essa mesmo; fiquem à vontade para incluir, discutir e discordar :)
Eu disse no Twitter, vou repetir aqui: Te amo por ter feito esse post. ♥
ResponderExcluirE se eu dissertasse qualquer coisa a mais, seria simplesmente entrar em repetição às coisas que você disse. Então eu vou me resumir a uma única frase:
Quanto mais nós procuramos termos para definir nossas sexualidades e identidades de gênero, mais eu vejo que, na verdade, não precisamos deles — porque deveríamos todos apenas ser quem somos.
É por isso que, no meu caso, eu até evito trabalhar com termos. Tirando um ou outro conto, eu não tenho personagens que se definem algo — seja porque a sexualidade é mais complexa do que isso, ou porque eu tendo a complicar tanto as tramas que a sexualidade deles simplesmente não importa tanto, mesmo que eu tenha sempre um parzinho (ou suruba lol).
Exatamente! Eu concordo plenamente, principalmente pela parte do não definir - é enclausurar demais as pessoas/personagens, sim.
ExcluirEu evito também, desde sempre, mas algumas coisas gosto de trazer a discussão pro centro da trama, que foi esse caso específico. E alguns personagens - assim como algumas pessoas - tem a necessidade de se definir, sabe? Até pra respirar aliviado, se encaixar, então não vejo muito problema em certos casos.
♥ ♥ ♥ ♥
Eu também não vejo problemas, mas comigo é realmente mais raro de escrever com personagens que parem pra se definir perante o leitor, sabe? Fora que eu escrevo coisas de época e coisas futuristas, e em coisas de época muitos termos não existiam, então não rola mesmo usar; nas futuristas eu simplesmente tento abolir esses termos pra ver como funciona mesmo.
ExcluirEntão é nas contemporâneas que eu acabo tendo essa necessidade de vez em quando. Mas também tem que eu não tenho muitas estórias que apresentem a coisa de "sair" do armário, ou quando os personagens saem é direto pra irem pra um outro problema random maior. XD
E, sério, Lô, eu acho ótimo você, com a visibilidade que tem, fazer esse post. ♥ E obrigado por me responder. x3 ♥